
Era primavera, o dia estava lindo, o céu, incrivelmente azul. O ano era 2004, na cidade de São Paulo.
Entrei no apartamento e me surpreendi com a quantidade de pessoas reunidas. Todos, muito animados, riam, falavam alto, mas eu sentia um clima tenso no ar. Era a despedida de uma das meninas, a Helena, que estava se mudando para os Estados Unidos.
Lembro-me pouco das conversas, mas duas coisas ficaram em minha memória: o semblante de cada um e o sabor da deliciosa feijoada servida no almoço. Havia uma mulher, no entanto, que me chamou atenção – ela não parava um minuto, andava de um lado para outro, atenta a tudo que estava acontecendo a seu redor. Enquanto os familiares de Helena não resistiam à emoção e deixavam as lágrimas correr entre risos e abraços, essa senhora continuava firme e silenciosa.
Não era muito alta, mas tinha um porte firme, embora fosse esguia. Tinha cabelos fartos, de fios grossos e muito pretos, arrumados delicadamente atrás da cabeça, também enfeitada por uma faixa de crochê cor-de-rosa. Incansável, andava silenciosamente da cozinha para a sala e da sala para os quartos, ora com comidas, com louças ou ajudando na arrumação das malas. Suas mãos de repente paravam de se mexer enquanto seu olhar doce acompanhava algo que ela parecia saber que faltava fazer. Eles a chamavam de Bá.
Bá também foi a primeira palavra pronunciada por Bernardo, irmão de Helena, antes mesmo de ele falar papai ou mamãe. Era dela o colo que o aquecia nas noites geladas de São Paulo, quando no meio da noite, ainda muito pequenino, ele descia de sua cama e corria até o quarto dela para se abrigar. Também eram dela as comidas deliciosas, como batata frita e purê, que as crianças nunca aceitaram feitas por mais ninguém.
Claro que esta superpreferência deixava muita gente enciumada, mas, sabe como é, crianças são sábias e não abrem mão desse amor.
Mas afinal, quem é Bá?
O nome dela é Evânia Ribeiro dos Santos. Ela nasceu em Itajuípe, uma cidade no estado da Bahia, em 22 de fevereiro de 1942. É mais conhecida como Vânia, ou Bá, para os íntimos.
Vania é filha de Cecília Ribeiro dos Santos e Antônio Pita dos Santos; também é irmã de Beatriz, Noêmia, Iraci, Luzia, Helena, João, Batista, Zezito, Carlinhos, Juarez e José Reis.
O João, o Batista e o Zezito na realidade se chamavam, respectivamente, João Batista, José e Antônio Carlos; e o pequeno, José Reis, era filho da dona Cecília e do seu José Deodato, segundo marido dela.
As raízes
A família herdou a ligação com a terra e a sabedoria dos índios da dona Cecilia e a força, a determinação e a alegria dos negros do seu Antonio.
Sim, sua infância foi muito feliz! Vânia se lembra de todos terem apanhado muito da mãe quando eram crianças e até acha graça dessas lembranças. De fato, apanhavam o tempo todo e por qualquer motivo – se mexessem nas linhas dela, se quebrassem o dente do pente, se perdessem uma agulha. Se tentassem encobrir os rolos dos outros, era pior que qualquer coisa, a surra era terrível! Eram broncas e surras todos os dias. Ela batia neles com a palmatória ou com a bainha do facão, mas também costumava dar cascudos com os nós dos dedos da mão.
Apesar de apanharem muito, as lembranças eram boas demais; no fundo, ela sabia que a mãe batia neles para que os filhos crescessem ajuizados e obedientes, valorizando as poucas coisas que tinham.
Ela nunca viu seus pais discutindo; ao contrário, eles conversavam muito. Dona Cecília era trinta anos mais jovem que o seu Antônio, e era ela quem cuidava da casa, da comida e dos onze filhos enquanto ele trabalhava na roça.
A recordação mais viva que Vânia tem do seu pai é dele chegando da roça, depois de um dia de trabalho, e todos os filhos correndo em sua direção para abraçá-lo. Ele deixava os meninos fazer com ele o que quisessem.
Ela lembra, com um sorriso no rosto, que ele a chamava de “Creza”. Da sua mãe, lembra de ser geniosa e não gostar de chamego. Nunca gostou. Até batia em quem quisesse encostar do lado para fazer carinho. Somente depois dos seus 60 anos foi que ela passou a aceitar, e mesmo assim só da Vânia – seus irmãos a chamavam de “remédio dela”, por causa do jeito doce e carinhoso com que tratava a mãe. Ela demonstra ter muito amor e saudade quando conta essas lembranças.
Eles moraram inicialmente na Fazenda Pancada Formosa, perto da cidade de Camacã, o lugar mais próximo do comércio, da igreja, da escola e das festas de São João. Naquela época, não havia luz elétrica nem água encanada; eles andavam com os pés descalços e pouca roupa no corpo. Cabelo, nem sequer penteavam.
A comida vinha da natureza, e os animais eram caçados pelo irmão mais velho e, eventualmente, com a ajuda de alguns trabalhadores da fazenda. A variedade de animais era grande naquela época: macaco, tatu, catitu, paca, jupará, veado, quati, guaxinim, peixes do rio e até passarinhos que vinham pendurados no cinto de João e Batista, reluzindo como troféus depois de uma manhã de atividade no mato.
Nas caçadas, Navegante estava sempre junto. Era um cachorro preto, lindo, seu pelo brilhava muito. Era ótimo na caçada, mas um dia, sem mais nem menos, ele desapareceu. Os irmãos acham que deve ter sido uma onça que o pegou, e é bem provável mesmo. Depois de Navegante, vieram Braque e Tubarão, mas nenhum deles foi igual ao primeiro; todos o adoravam, ele era muito especial.
Fazenda Pancada Formosa
A Fazenda Pancada Formosa pertencia ao senhor Renato, que morava em Ilhéus. Quando ele se ausentava, era o senhor Acrizio que a gerenciava, e o senhor Antônio, por sua vez, se reportava a ele. O senhor Acrizio não era brasileiro – de pele muito branca, tinha olhos claros e o cabelo bem loiro. Parecia alemão e também falava um português com sotaque. Era boa pessoa; sempre levava presentes para as crianças, principalmente umas deliciosas balas listradas que ele carregava em pequenos saquinhos.
A fazenda continha várias casas, entre elas, a casa-grande, a dos trabalhadores, a do senhor Antônio, que morava com sua família, uma outra pequena e duas barcaças onde secavam o cacau. Na época de colheita, com o aumento do número de trabalhadores e suas esposas, a parte de baixo das barcaças era usada como moradia também.
O cultivo e a colheita do cacau eram a principal atividade econômica nessa região e na fazenda. As crianças podiam abrir seus frutos e comer suas polpas brancas e suculentas, mas os pais as orientavam a recolher as sementes, guardá-las na cumbuca do cacau e depois jogá-las no coxo de madeira. Se não fizessem isso, os pés de cacau cresceriam espalhados por aí, e então eles teriam de sair limpando os terrenos, coisa que ninguém queria fazer.
Como não tinham água encanada, a louça e a roupa eram lavadas na margem do rio pelas meninas, mas todos eles eram proibidos de entrar na água enquanto trabalhavam. Claro que não obedeciam e, frequentemente, entravam no rio, se refrescavam sem molhar a cabeça e aproveitavam para jogar as sementes do cacau. Era bem mais divertido cuspir no rio sem deixar rastro.
Depois de colhido o cacau, ele era quebrado, e a semente e a polpa eram retiradas da casca para depois ser jogadas no coxo, onde passavam pelo processo de fermentação por três dias. Em seguida, o cacau era levado para as barcaças, onde crianças e adultos o pisavam para separar a polpa e a semente com os pés. E assim, apesar do trabalho, todos se divertiam pra valer enquanto tentavam jogar uns aos outros no chão.
Histórias de Cobras
Na roça, as crianças normalmente não têm medo de nada; elas fazem de tudo, até perseguir cobras! As cobras, claro, morrem de medo das crianças, e com os meninos da Fazenda Pancada Formosa a situação não era diferente.
Vânia se lembra de um dia em que ela e Iraci voltavam do rio carregando na cabeça uma bacia cheia de louça e uma lata de querosene quando escutaram um silvo vindo do mato. Pararam, largaram o que tinham na cabeça e foram procurar; elas sabiam que era uma cobra. Quando a acharam, ela fugiu mais do que depressa. Era uma cobra-espada, verde com uma listra preta que ia da cabeça à ponta do rabo, e media quase dois metros de comprimento. Quando a cobra chegou perto da bica, subiu pelas pedras rasteiras, se enrolou toda e se lançou na direção da Iraci, abrindo uma boca enorme!
Você pensa que elas ficaram com medo do tamanho da boca da cobra? Nem um pouco! Elas ficaram impressionadas porque a boca dela parecia que estava de batom! Sim, e vermelho! Foi demais! Boca enorme, a cobra de batom!
Iraci saiu correndo atrás dela, mas a coitada estava tão apavorada que apenas inflou e dilatou-se até ficar redonda de tão inchada. As meninas felizmente desistiram de perturbá-la e, aos poucos, ela foi voltando ao seu tamanho normal. Essa cobra não tem veneno nem dentes.
Mas com cobras não se pode brincar. Não são todas que fogem com medo; algumas guardam na memória e depois vão atrás de quem as provoca. Batista bem sabe disso!
Um dia, Iraci, João, Batista, Noêmia e Vânia pegaram Nobreza, a mula de estimação, e saíram para colher mandioca. Por causa das chuvas, o barreiro por onde passaram tinha virado um lago e eles não conseguiram atravessar. Eles resolveram deixar os animais e voltar no dia seguinte. Antes de partir, no entanto, eles notaram que havia uma cobra, a caninana-fogo (vermelha e preta), e, claro, resolveram pegá-la. Essas crianças não podiam ver nada que já queriam aprontar, só que dessa vez não foi Iraci quem levou o susto, mas sim Batista, porque no dia seguinte, quando ele voltou para buscar os animais, a cobra estava lá. Isso mesmo: esperando por ele! E ela o fez correr e correr até chegar em casa. Essas cobras são vingativas; elas não têm dentes, mas batem com o rabo. Ufa! Que susto!

Foto maior e no centro: Vânia e Iraci / Esquerda: Iraci, Adenilso, Vânia, Joaquin, Albertino, Noêmia e Ubiratan / Direita: crianças no rio
Próximo destino: Camacã
Infância feliz, brincadeiras e banhos de rio, até o dia em que a vida mudou. Esse pai maravilhoso, que adorava estar perto da criançada, caiu e não se levantou mais. Ele estava com 60 anos, e Vânia nessa época tinha 11. Tudo aconteceu muito rápido: ele voltava da roça, e seu coração simplesmente parou de bater.
João, irmão de Vânia, que na época tinha apenas 17 anos, por ser o filho mais velho, assumiu a responsabilidade pelo trabalho e pela família. A partir desse momento, houve três anos de trabalho duro; todas as crianças tiveram de ir para a roça derrubar e bandeirar cacau, o dia todo, de segunda a sexta-feira, sem receber pagamento.
Depois de um tempo, o dono da fazenda resolveu vender a casa, e a dona Cecília não teve outra opção senão se mudar para Camacã com todos os seus filhos. Vânia e Iraci, com 14 e 15 anos respectivamente, foram trabalhar como domésticas numa casa, onde passavam a semana toda. Somente aos domingos elas visitavam a família. Noêmia já estava casada e morava numa fazenda distante. Zezito, Luzia, Juarez e Carlinhos eram pequenos; ficaram com a mãe em casa. João foi morar em Itajuípe e depois foi trabalhar em fazendas.
Foi uma época difícil e muito sofrida. Vânia e sua irmã não gostavam do local onde trabalhavam – a casa da dona Maria e do seu Solidório. Elas tinham de acordar às 4h30 todos os dias apenas para passar o cafezinho para o patrão. Não era um café da manhã completo, apenas uma xícara de café. O pior era que não tinham nada para fazer depois, já que o cuscuz era a própria dona Maria que fazia quando acordava, por volta das 8h. Às meninas não era permitido voltar a dormir, tinham de ficar sentadas na frente da casa, olhando a única paisagem que havia: um matadouro. Ficaram nessa casa durante dois anos.
Logo depois, Vânia foi para a casa de uma família muito boa, onde ela ficou três anos tomando conta de oito crianças. Nessa época, sua mãe conheceu José Deodato e deu à luz seu último filho, José Reis. O casal resolveu mudar para uma fazenda perto de Camacã, e eles tomaram a difícil decisão de deixar Helena, irmã de Vânia, morando com seu padrinho, pois não tinham como levar todos os filhos com eles, por isso escolheram apenas os três meninos menores: Juarez, Carlinhos e o caçulinha José Reis.
Sem sombra de dúvida, esta foi a história mais triste que a família teve de enfrentar; difícil e traumática. Helena não queria ficar com seu padrinho, ela queria ficar com a mãe e os irmãos. Para toda a família foi angustiante ver a dor e o desespero dela, mas ninguém pôde fazer nada. Ela era muito bonita, então, conheceu um rapaz um tempo depois e começou a namorar. No entanto ela nunca superou essa separação dos seus pais e, aos 18 anos, deu fim à própria vida depois que seu noivo rompeu o noivado.
Como se não bastasse esse episódio na vida de dona Cecília, um tempo depois foi a vez de os meninos Juarez e Carlinhos falecerem exatamente no mesmo dia, um com 7 e o outro com 8 anos, vítimas de intoxicação. Devastados com o acontecimento, dona Cecília e o seu José Deodato decidiram voltar para Camacã. Eles moraram um tempo com uma filha dele e depois regressaram para a roça, para a fazenda Poço Redondo.
A família toda ficou arrasada, foi silenciando e com o tempo se distanciou. Vânia foi para Itabuna (no sul da Bahia); Beatriz, Iraci e Zezito foram para o interior de São Paulo; e a dona Cecília e o seu José Deodato desapareceram durante dez anos.
Sua filha
O tempo passou, e ele acaba, se não cicatrizando, pelo menos amenizando as feridas. A vida continuou, e Vânia foi retomando a alegria e o gosto de viver. O que ela gostava de fazer? Bem, ela também adorava festas e sair para se divertir com as amigas, um trio em que ela era a chefe da gangue — imagina só a Vânia chefe de uma gangue! E elas aprontavam pra valer; o Borocoxó que o diga. Ele era um rapaz tão abusado, mas tão abusado, que, de tanto perturbar as meninas quando elas passavam, um dia acabou apanhando delas. E pensam que elas se intimidaram pelo fato de o Borocoxó ser homem? De jeito nenhum! Ele apanhou delas e, daquele dia em diante, sempre corria para se esconder quando as via chegando pela rua.
Aos 20 anos, Vânia conheceu Antônio de Oliveira numa festa junina. Ele tinha 25 anos, era um rapaz muito bonito, simpático e trabalhava numa serraria. Ficaram juntos por três anos, mas o namoro deles era mais um “rala e rola”, porque namoravam, brigavam, voltavam e novamente brigavam, namoravam, e assim iam e voltavam o tempo todo. O relacionamento não foi adiante, mas do namoro nasceu sua linda e amada filha Lília.
Lília Ribeiro dos Santos nasceu em Itabuna em 16 de agosto de 1967. Esse acontecimento proporcionou muita felicidade à vida de Vânia, mas também muitos desafios e preocupações que ela teve de administrar, como trabalhar e cuidar de sua pequena filha, pois não tinha com quem deixá-la.
Logo depois, Vânia começou a trabalhar na casa da dona Maria – viúva, mãe de sete meninas, que, por sua vez, trabalhava num hospital como enfermeira. Exatamente isso que você entendeu: Vânia não só teria de cuidar de sua filha pequena, sendo mãe de primeira viagem, como também cuidaria de mais sete meninas! A verdade é que dona Maria foi um verdadeiro anjo na vida das duas; acolheu-as e tratou delas como se fossem da própria família. Ficaram na casa dela durante quatro anos, mas, em 1973, Vânia decidiu se mudar para São Paulo junto com Lília, sua prima Noélia e o marido dela. Queriam ter uma vida melhor.
A vida em São Paulo foi difícil no início. Vânia trabalhou durante um ano na casa do senhor Dantas e da dona Odete em plena época da ditadura. O filho do casal, a nora e uma parte da família estavam presos, por isso o clima era muito tenso, o que consequentemente fazia com que o neto deles se mostrasse muito revoltado, a ponto de agredir a Vânia. Dona Odete tinha uma butique dentro de casa, o que tumultuava bastante o serviço doméstico, e, para piorar, Vânia não podia morar com sua filha na casa deles. A pequena Lília não era bem-tratada nem recebia o carinho de que precisava na casa de Noélia, e isso tudo deixava Vânia muito chateada.
A gota d’água veio no dia em que a menina, na época com 7 anos, muito miúda e acanhada, falou baixinho e com o olhar mais triste que a Vânia já vira: “Mãe, você não gosta de mim?… Se gosta, por que me deixa aqui?”.
Foi nesse momento que ela decidiu imediatamente começar a procurar um lugar para morar em que elas pudessem ficar juntas, e isso se concretizou pouco tempo depois, quando Vânia encontrou uma família que passaria a fazer parte de sua própria história, e dessa vez junto de sua filha.

Esquerda: Vânia, Milena, Bernardo e Helena / No centro as crianças com a bisavó D. Aída / Direita: As crianças adultas
Dona Aída, uma nova família
Dona Aída era a mãe de Renato e Geraldo e avó de José Luís, Anamaria, Paulo Sergio, Renato Jr. e Camelô.
Uma senhora generosa, justa, de um coração imenso, com a qual Vânia teve uma convivência maravilhosa. Sem dúvida, ela sabia viver de verdade. Não maltratava as pessoas nem usava palavras duras com ninguém. Seu passatempo favorito era contar causos que todos adoravam escutar. O coração de Vânia fica apertado quando ela se lembra de dona Aída. Ela foi muito especial para Vânia e cuidou de sua filha Lília como se fosse sua neta de verdade.
Lília se emociona e confirma tudo: “Dona Aída era uma senhora muito querida, a quem eu via como uma avó. Nós íamos à missa juntas aos domingos e, às vezes, passávamos as tardes juntas em um bazar de caridade. Eu considero a família dela como minha família também”, conclui.
Quando Lília tinha 8 anos, ela e sua mãe foram morar com Anamaria, neta de dona Aída, que já era casada. Como o casal trabalhava, Vânia foi morar lá para ajudar a cuidar da Milena, filha do casal. Os anos se passaram, Anamaria teve mais dois filhos, Bernardo e Helena, e, assim, todos cresceram juntos. Todos se formaram, se casaram e saíram de casa. Vânia e Anamaria, no entanto, continuam cuidando uma da outra, à medida que a vida segue em novos ciclos e todos vão envelhecendo.
Lília casou-se com 27 anos e se mudou para Portugal. Ela vive lá até hoje com o marido e seus três filhos e não pensa em voltar para o Brasil. Mãe e filha têm um vínculo muito forte, se falam todos os dias, e, sempre que a situação permite, Vânia faz as malas e passa um tempo com eles, porque adora estar com os netos e passear pelas diversas cidades próximas a Vendas Novas, onde Lília mora com a família. Luís agora está com 24 anos. Gabriela, com 19; e Luana, a menor, tem 14 anos. A Gabi, como é chamada a Gabriela, é a mais brincalhona; constantemente, ela resolve filmá-los sem que percebam e depois compartilha os vídeos para promover a alegria de todos.
Vânia tem vontade de se mudar para Portugal, para ficar mais perto deles, mas ao mesmo tempo não quer perder sua independência, por isso prefere ficar em São Paulo, onde se sente mais segura, tendo médicos e hospitais por perto.
Uma trajetória de muitas casas e crianças
A vida mostraria a Vânia que o movimento iniciado aos 14 anos, ao sair de Camacã, indo depois para Itabuna e finalmente para São Paulo, seria muito mais que uma busca por emprego. Esse movimento na realidade a levaria a cumprir uma missão junto a muitas famílias.
Não foram poucas as casas por onde ela passou, e na verdade foram muitas as crianças que, desde muito pequenas, ela ensinou a comer, se vestir, tomar banho, fazer as tarefas da escola, e também as ninou quando ficaram doentes e seus pais estavam longe, trabalhando. Ela nunca se intimidou na atividade de educá-los, e também os repreendia quando percebia que estavam passando dos limites. Ela transmitiu às crianças os valores que aprendeu desde pequena, e elas souberam retribuir com amor e gratidão ao longo da vida.
Enquanto se sentava junto deles para acompanhá-los nos deveres escolares, ela também aprendeu a ler e escrever, já que não tivera oportunidade de frequentar a escola em sua infância. Ela observava e praticava.
Outras características marcantes de Vânia são a sua determinação e a vaidade, além de ela ser muito independente. Ela nunca deixa de fazer o que quer fazer; tem perfil em redes sociais, publica fotos e acompanha a vida de sua família, que mora longe. Ela adora bater perna na rua, conhece todo mundo da vizinhança e manda fazer suas roupas sob medida na costureira Lourdes, que ela conhece há muitos anos. Elegante e de salto alto, ela curte seus sábados e domingos, quando visita as amigas ou vai à igreja.

Alto: Vânia, Mathias, Arthur e Alicia / Esquerda: Vânia e Anamaria / Centro: Bernardo, Paulo Henrique, Vânia, Tatiana, Mathias, Alicia e Milena / Arthur dormindo e Mathias com dedo no bolo, 2017
No total, foram quase cinquenta crianças que ela acompanhou ao longo de sua vida; algumas delas eram filhos das crianças que ela viu nascer também.
Ela sente muita emoção convivendo com a terceira geração dessa família na casa em que trabalha e onde é cuidada até hoje. São crianças que instintivamente repetem as mesmas atitudes, como o Arthur, mais conhecido como Tutu, filho da Milena, que adora se refugiar na cama da Vânia para tirar uma sonequinha depois do almoço, enquanto seus pais conversam na sala. Exatamente como fazia sua mãe e seus tios, quando eram crianças também. Nada mudou.
São muitas as lembranças que Vânia tem, e algumas são relatadas com uma riqueza de detalhes impressionante. Os diálogos, as datas, os nomes são tantos que emocionam. Ela reserva um carinho e um sorriso cheio de doçura quando fala de seus irmãos, de suas histórias e de seus destinos.
“Quem é que a minha mãe não consegue cativar?”, pergunta sua filha Lília, que adora ouvir as histórias de vida e as trapalhadas da infância de Vânia. Ela sente muito orgulho de suas origens, do sangue indígena e do privilégio de ter a mãe que tem – uma guerreira e um dos seus pilares.
Vânia a ensinou a ter respeito pelo próximo, mas a principal lição ela levará para o resto da vida, inclusive sendo parte de sua atividade profissional: o cuidado com os idosos.
Assim vamos tecendo cuidadosamente as palavras desta baiana guerreira e iluminada cujas histórias precisam ser contadas, honrando não só seu passado como o passado de todas as mulheres que, neste país, se dedicam não só às suas famílias, mas também às crianças, aos adultos e aos anciões de inúmeros lares, levando carinho, cuidado, sabedoria e, acima de tudo, amor.
As crianças agradecem.

Esquerda: Vania e Luis / Alto: Vânia e Lília / Centro: Vânia tocando violão / Embaixo: Gabriela, Luana, Vânia e Luís
Esta história é mais uma história de idosos que inspiram e faz parte do Projeto Amaridades – Contando Histórias, Inspirando Futuros.