Eu te dedico estas palavras

Eu te dedico meu tempo, meu espaço e tudo que deles brotou

Eu te dedico meu abraço, meu sorriso e cada lágrima derramada

Eu te dedico, hoje e sempre, todo meu amor

Encontros marcantes

Tenho olhar de estrangeira, não que eu não seja, mas me sinto atraída por pessoas ou situações que normalmente não chamariam a atenção dos outros. Com curiosidade paro para observar, para aprender e com frequência fotografo, capturando um segundo da beleza e da magia que isto me provocou.

Foi com este olhar e uma dose de ternura, que me aproximei da Rosália, em abril deste ano. Eu estava na Universidade de São Paulo – USP, como convidada da professora Neuza Guerreiro de Carvalho, para assistir sua aula do curso Resgate de Memória Autobiográfica, quando a escutei pela primeira vez.

Eram cinco alunos na sala, além da professora Neuza e sua assistente Cristina, mas foi escutando a lição de casa da Rosália, sobre a escola, que eu comecei a me interessar por esta pequena grande mulher.

Turma da USP da professora Neuza Guerreiro de Carvalho, 2018

Como de costume o universo conspira e assim como no amor, as situações surgem, os contatos vão ficando mais frequentes, as relações se estreitam, os convites aparecem e finalmente estamos aqui, meses depois, resgatando sua trajetória de vida, do seu povo e sua incrível história de amor.

Cuide de fiar sua rede

No Ceará, a primeira coisa que os pais dizem para uma moça quando ela está para se casar é: “cuide de fiar sua rede para a noite do seu casamento”. E é assim que as mulheres aprendiam desde muito cedo a plantar o algodão, colher o de melhor qualidade, descaroçar, fiar e fazer a varanda. Rosália não foi diferente e com capricho fiou suas redes. Na realidade, mal sabia ela, não era bem para esse noivo que ela as estava fiando.

A Rosália não frequentou escola quando criança, sua família era muito pobre e as escolas distantes demais do agreste, local onde moravam. Era a filha mais velha de 12 irmãos, sobrando pouco tempo para outras coisas que não fossem ajudar sua mãe e seus irmãos. Mas a falta de estudo não a impediu de aprender, e muito bem, a fazer arte com as mãos só de olhar os outros fazendo. Foi assim com a fiação, a costura e o bordado. Mais tarde fez curso de corte e costura e anos depois, o diploma recebido seria seu passaporte profissional.

Fiar e casar são assuntos muito sérios no Ceará e quem pensa que pode driblar o destino, está redondamente enganado. Rosália nasceu em Muricizinho e não muito longe dali nasceu Valmi, que perdeu o pai com 3 anos e acabou sendo criado por uma tia da mãe da Rosália, ficando com ela até os 14 anos. Mesmo morando em locais próximos e com alguns laços em comum, foi somente em Lagoa das Pedras, onde a família da Rosália tinha ido morar desde que ela tinha 6 anos, que acabaram se encontrando.

“…. haviam três lagos em Lagoa das Pedras. Chamava assim porque tinha muito serrote que é uma pedra sozinha ou muitas pedras umas encima das outras. Eu mesma me admirava. Eram uns serrotes quadrados, parecia terem sido feitos sob medida. Tinha um lugar que quando a lagoa estava cheia, era mais acessível para lavar roupa. Tinha outro lugar que criava areia, nós chamava de poço da lagoa, era onde nós tomava banho e, o resto dela era todo coberto de vitória-régia. Nós a chamamos de aguapé. A gente ia colher as flores, porque eram cheirosas e lindas….” diz Rosália.

Mas o que tem a ver bordado com casamente ao final?

Tudo a ver. Como Rosália tinha aprendido desde seus 12 anos a fazer ponto de cruz, com frequência era chamada pelos fazendeiros ricos da região para dar aula para as moças, normalmente suas netas. Só que não ganhava nada.

“…. minha mãe falava…. Rosália, eles querem que tu vá ensinar… e eu ia com muito gosto, com muito prazer. Me tratavam bem, mas não ganhava nada…pior que eu ainda sonho com isso, sempre indo, mas nunca volto com um tostão” e a Rosália solta aquela risada gostosa ao lembrar como eram as coisas naquela época.

Mas um belo dia, como é de costume nas fazendas, as pessoas se reúnem de manhã em volta do curral para beber leite. A Rosália estava lá e enquanto bebia seu leite notou que o Valmi se aproximava também, estava com seu irmão, mais o Raimundo, irmão da Rosália e um outro amigo.

“… eu já tinha visto ele, mas não tinha… sabe, como é que a gente diz, dado olhar de namoro… sabe… saber que deu liga…”

Os quatro encostaram para beber leite também. Eles já se conheciam, mas não pensavam em namoro, Rosália era mais velha que o Valmi 4 anos e justo naquele dia ele estava indo se alistar no exército pois já tinha completado 18 anos.

“…Foi o primeiro dia que nós deu olhar de namoro…” 

Feito! O cupido tinha acabado de lançar a flecha e acertado em cheio seus corações. Agora o destino se encarregaria do resto.

Neste mesmo dia, na casa da tia Naná, haveria uma cantoria porque um de seus filhos estava de partida para São Paulo, e como o lugar era bem afastado dali eles resolveram ir juntos a pé.

Bozó e dados

 

A casa estava animada e muita gente foi festejar a despedida.

Os amigos gostavam de jogar bozó e apostar dinheiro, mas nem todo mundo, incluindo o Valmi, gostava de apostar, então eles ficavam apenas “piruando” o jogo.

 

 

Nestes eventos, os cantadores costumam louvar pessoas presentes na festa. Não por acaso, tinha um rapaz de São Paulo que estava doido para namorar a Rosália e resolveu mandar louvá-la com uma música. Mais do que depressa ela, que não estava nem um pouco a fim de namorar com esse rapaz, pede para o Chico, irmão do Valmi, ir chamá-lo para ela.

O Valmi chega e diz: “o que você quer comigo?”

E ela: “nós conversar né?” Decidida e certeira.

E assim começou o namoro que alguns anos depois virou casamento e já dura cinquenta e oito anos.

Rosália e Valmi, 2018

Casar é preciso

Antes de namorar o Valmi, Rosália conheceu um outro rapaz, filho de fazendeiro, família de muitas poses. Namorou e chegou a noivar. Estava certa que esse rapaz seria o ideal para ela, até o dia que foi conhecer, com seus pais, a família dele. Sabe aquele clima dentro de casa com a futura sogra implicando com a nora, mulher do outro irmão? E o pai dizendo para eles que o filho dele não tinha maturidade para casar? Para completar o drama, ainda viu a casinha isolada no mato que o namorado estava preparando para eles morarem. Pois bem, viu o suficiente, porque ao voltar para casa, rapidinho deu um jeito de acabar com o namoro.

Sorte do Valmi.

No Ceará, casamento americano e fuga da noiva eram as saídas mais usadas quando os pais eram contra os casamentos dos namorados.

O casamento americano era rápido e prático. Ninguém ficava sabendo, apenas os amigos que entre uma fofoca e outra comentavam: “sabe quem está casando hoje? o fulano!” Isto porque não haviam padres fixos nas vilas, eles chegavam para rezar as missas apenas uma vez por mês, sempre no primeiro domingo. Se os casais queriam casar, era só esperar acabar a missa das 10hs e pronto, o padre os casava. Naquela época não era necessário casar no civil antes de casar na igreja. Bem mais fácil.

Agora, se a família da noiva não aceitasse o casamento da filha, eles fugiam. Mas espera aí, tem todo um protocolo a ser seguido, não pensa que é sair correndo por aí e se esconder. De jeito nenhum.

Para garantir que tudo estivesse nos conformes, seguiam os seguintes passos:

  1. Primeiramente o rapaz que pretendesse roubar uma moça, tinha que arrumar antes um casal que ficaria responsável por ela, na casa deles, até casarem.
  2. Quando o rapaz decidisse roubar a moça, já tinha que ter arrumado tudo para o casamento, inclusive a casa onde iriam morar.
  3. Para roubar a moça, ela pularia a janela de sua casa, sempre depois da meia noite, e ele a levaria na garupa do seu cavalo até a casa do casal que ficaria responsável por ela.
  4. Moça que amanhecia o dia em outra casa já era certo que tinha fugido para casar
  5. No dia seguinte do roubo da moça, o responsável pela casa onde ela estava, tinha obrigação de selar o cavalo, ir na casa dos pais da moça com o noivo e avisar que ela estava lá.

Rosália e Valmi não precisaram fugir para casar, mas o avô da Rosália, por parte de pai, ele sim roubou a Josefina, sua avó. Ele a conheceu quando ela tinha 12 anos e ele, mais de 20. Quando ela, toda charmosinha, passou por ele numa visita que ele fazia à fazenda de familiares, ele comentou: “oh menina bonita”. Ela deu uma sacudida no cabelo, olhou para atrás e disse: “me espere”. Dito e feito. Ao fazer 14 anos, ele a roubou e sabem com a ajuda de quem? do tio avó da mãe da Rosália!! Isso mesmo, quem diria que anos depois todos passariam a ser da mesma família.

Por causa do amor

Rosália e Valmi estão casados há 58 anos, passaram por muitas situações desafiadoras desde pequenos, mas em nenhum momento percebo traços de tristeza, raiva ou frustração. Ao contrário, todas as narrativas são positivas, reais e contadas com muito humor. Quando lhes pergunto qual a receita para um casamento tão duradouro, Rosália apenas fala: “saber conciliar”.

Conciliar: entrar em harmonia.

“Quando fala o amor, a voz de todos os deuses deixa o céu embriagado de harmonia” 

— William Shakespeare

Sim Rosália, você tem toda razão. É sempre o amor e onde há amor há alegria, há força e muita disposição para ir além, mesmo quando parece que não há saída possível ou quando o corpo quase para, de tão exausto que está.

 

Foi assim em 1959, numa das piores secas que o Ceará enfrentou, quando o pai da Rosália decidiu se mudar para São Paulo e tentar uma nova vida junto com sua mulher e filhos. Foram oito dias de viagem e setenta pessoas, sacolejando na estrada encima de um caminhão pau-de-arara, coberto com lona. Além do desconforto, falta de banho e em várias ocasiões, encharcados de chuva, Rosália e a sua irmã Francisca, ainda ficavam amarradas de noite para não cair, caso cochilassem, já que sentavam nas pontas do banco do caminhão.

 

Também em 1963, já casados, quando Valmi perdeu o emprego. A primeira filha, Maria do Carmo, já tinha nascido e estava com 4 meses, não tinham como se sustentar. A casa onde moravam não tinha luz elétrica nem água encanada, usavam lampião para iluminar e água de poço. Mas com uma coragem e disposição leoninas, a Rosália decidiu abrir sua escola de Corte e Costura dentro de casa. Começou com uma máquina, dando aulas o dia inteiro, iniciando às 8hs e acabando às 22h, inicialmente 2as, 4as e 6as feiras, só parando das 12 às 14h para ver o almoço, cuidar de criança, da roupa e da casa. Rapidamente conseguiu 40 alunas. Depois as alunas perguntaram se ela dava aula de bordado a máquina, foi aí que abriu mais turmas nas 3as, 5as e sábados. A esta altura já tinha quase 80 alunas e como se não bastasse, o padre do bairro perguntou se ela poderia dar uma aula de corte e costura na igreja. Ela aceitou. Ficou 30 anos dando aulas gratuitas todas as 4as feiras, chegando a ter até 25 pessoas ao mesmo tempo na igreja.

Quando o Valmi voltou a trabalhar, a Rosália acordava às 4h da manhã para preparar o almoço e arrumá-lo na marmita para ele. O cansaço era muito grande, por isso ela precisava colocar o lençol e o travesseiro no chão, ao lado da porta de entrada, para poder escutar o Valmi batendo na porta quando chegasse. Na porta deles, só havia uma pequena grade, sem vidro, por onde viam quem chegava. Não tinham chave para abrir a porta por fora, então ela precisava abrir por dentro. Valmi costumava fazer hora extra e acabava chegando em casa depois da meia noite.

Certo dia, o sono e o cansaço eram tão desesperadores que quando Valmi bateu na porta, ela pulou do chão e ao invés de abrir a porta, ficou riscando fósforos, como se o fogo fosse abrir a porta!!! Ela se diverte muito contando esta história, dá muita gargalhada, mas imagina o que não sentia na época. Mas tudo passa.

 

Não satisfeita com este ritmo de vida, com as inúmeras aulas que dava, ela ainda vendia roupas do Ceará, de Ibitinga, do Brás e ainda produtos da Avon. Para completar o leque de opções, ainda vendeu álbuns de figurinha para poder ganhar uma panela de pressão!!!

 

E mais uma vez, quando os médicos descobriram a segunda doença grave que o Valmi enfrentaria. Rosália diz: “sai tão abirobada que no lugar de eu levar a pasta dele, levei a minha”. Ela se referia aos exames que ele tinha se submetido para a preparação da cirurgia e ao estado emocional que ficou. Muito abalada, mas nem por um segundo deixou a peteca cair, na realidade foi ela mesma que desconfiou que alguma coisa errada estava acontecendo, à medida que ele ia perdendo o apetite, coisa raríssima de acontecer, já que gostava muito de comer. De imediato levou no medico e dali começou a maratona de exames para fazer a cirurgia. A essa altura seus dois filhos que moravam no exterior, chegaram de imediato para dar todo o suporte que os dois precisavam. Ela se permitiu chorar, não porque se sentisse frágil, mas porque não era dessa maneira que ela queria que se reunissem novamente. Incansável ficou do lado do seu companheiro e assim o faz até hoje.

Vida a dois é isso, é cuidar um do outro.

Quando pergunto para o Valmi o que sente por esta mulher, sua companheira de estrada, ele olha para a mesa e com voz baixa responde: “Não tenho palavras”.

Nem eu Valmi. Não tenho palavras para expressar tamanha admiração pela vida que vocês e suas famílias construíram. Com estes relatos vejo não só a vida do Valmi e Rosália, mas de milhares de cearenses que fugiram da seca e da pobreza, modificando o destino de suas famílias e seus sucessores. A geração dos filhos e netos de Rosália e Valmi não moram mais no agreste, eles vão a escolas, a faculdades, falam outros idiomas além do português e ainda trabalham no exterior.

Tudo isto porque receberam de seus pais e antepassados o exemplo de coragem, determinação, orgulho e muito amor pela terra e pela família.

Este é o Brasil.

Valmi, Rosália e Sandra, SP-2018