Um dia, num lugar bem longe daqui, conheci um homem de fala tão divertida que até parecia fantasia. Me deu uma vontade danada de escrever sobre ele, por isso minha narrativa começa assim:

O Mestre

Era uma vez, um menino chamado Espedito, nome tão diferente quanto o sobrenome que um dia ele viria a adotar: Seleiro.

Se Espedito traduz “aquele que encontra a saída”, Seleiro é o legado recebido de homens artesãos, mestres na arte do couro. Seleiro de sela, de chapéu, de colete ou bornal tudo de couro, couro macio, couro formoso para fazer bonito em qualquer vaqueiro grandioso.

O menino Espedito nasceu em outubro de 1939 no município de Arneiroz, com o nome Espedito Velozo de Carvalho. Acontece que ele nasceu diferente, ele não era apenas um menino, ele nascera Mestre, porque todo Mestre já é Mestre desde aquele primeiro minuto quando ele nasce, ele só precisa se qualificar na história e acompanhar tudo aquilo que ele deseja.

“Sou filho de um Seleiro, já nasci Mestre… comecei aos 8 anos com meu pai e já fui pegando a prática, fui controlando as coisas e mantendo a tradição familiar”— Espedito me explica.

Na tradição dos Seleiro é assim que se faz, eles mantêm viva uma arte que já vem de muito longe, o conhecimento vai passando de geração em geração e é muito bonito de se ver.

Espedito aprendeu com seu Raimundo, seu pai, ele aprendeu com seu Gonçalves, seu avô e este último aprendeu com seu Antônio, seu bisavô. Todos Seleiro.

Coletes de vaqueiro

O Legado

Até onde Espedito tem conhecimento, ao todo são sete gerações, começando com seu tataravô, que continuam mantendo viva esta profissão. Hoje, em Nova Olinda onde moram, são mais de 38 pessoas trabalhando com ele, sendo que a menorzinha, sua neta, tem apenas 13 anos de idade e a verdade é que continuarão até o mundo se acabar, como ele diz, porque todos acham bom. Nunca ninguém saiu de perto dele, todos continuam trabalhando ali e vivendo por perto.

Apenas Espedito tem o conhecimento e a experiência suficientes para fazer os moldes, por isso ele os prepara e entrega para o grupo dizendo o que é para fabricar. Ninguém é rico, acrescenta, mas também ninguém passa fome.

O Ateliê do Espedito

“Hoje eu tenho um grupo familiar. Comecei sozinho e depois quando me casei, minha mulher ficou me ajudando e aí foram nascendo os filhos, foram crescendo e me ajudando e hoje está tudo aí, mais meus irmãos, com a cabeça branca igual à minha. Botei para aprender também e agora estão todos na oficina. Eu corri atrás das vendas e deu tudo certinho graças a Deus” fala com satisfação Espedito.

foto: João Monteiro Neto – CC BY-SA 4.0 (ref. Wikipédia)

Vaqueiros

O Espedito gosta de contar muitas histórias, disse que o vaqueiro apareceu quando descobriram o Brasil…. mas é claro! Descobrindo o Brasil, apareceu o gado, alguém tinha que tocar esse gado, por isso surgiu o vaqueiro, cujas vestes de couro eram feitas com tamanho capricho que ninguém poderia deixar de notar, era um tal de chapéu para acá, gibão para lá, isso sem falar do colete, as perneiras e até o bornal!

Ele diz com orgulho: “O meu pai era vaqueiro e seleiro, seleiro porque fazia sela para o vaqueiro da região, precisava, né? E vaqueiro porque cuidava da criação da fazenda. Haviam muitas fazendas por lá.…. cada fazendeiro tinha um vaqueiro afamado para pegar boi brabo na caatinga e cada vaqueiro daqueles tinha um cavalo próprio para pegar e puxar 80, 90, até 100 quilômetros dentro do mato.

Mas esse negócio funcionava mais ou menos assim, preste bem atenção: “…quando chegava a noitinha, lá pelas 6 ou 7 da noite, toda a vaqueirama se juntava na casa da fazenda para discutir quem iria pegar o boi brabo no dia seguinte, cada um queria pegar primeiro que o outro para conseguir levar o nome de vaqueiro bom, então rapidamente o vaqueiro corria até a casa do Seleiro e dizia, — Oh! eu quero uma sela bonita, boa, segura, toda arriada que amanhã eu vou pegar o boi brabo do compadre fulano de tal e assim, assim e assim …”

 Só que ele queria ser o primeiro a pegar a sela para depois correr na fazenda, se juntar aos outros e ficar mangando daqueles que não pegaram o boi — Tu é mole, tu não pegou, quem pegou foi eu — faziam aquela farra desgraçada né? Era o que o vaqueiro achava de melhor na vida, quando se juntava aos outros, vestindo suas roupa, novinhas, cheirando a couro, cada um com um cavalo bem gordinho, bem “aprumadão”. Parece que eles estavam no céu — lembra o Espedito com um sorriso enorme no rosto de puro encantamento.

O Mestre contando histórias

Lendas de um Seleiro 

Num determinado momento, perto dessa época, existiram uns cangaceiros famosos e havia um tal de Lampião; ele ficou muito, muito famoso depois que morreu. Antes, todos tinham muito medo dele. Se alguém falasse em Lampião, o povo ficava todo se tremendo. Ave Maria! Onde é que esse homem está? Se ele estava por perto todos corriam para caçar um lugar para se esconder. Assim me conta Espedito.

Naquela fazenda, onde o pai do Espedito morava, enquanto ele terminava uma sela usando a delicada luz que vinha de uma pequena lamparina acessa, apareceu de repente uma pessoa desconhecida no parapeito da janela e disse: — Como é seu nome? — ai ele respondeu— Meu nome é Raimundo Pinto de Carvalho, mas só me conhecem como Raimundo Seleiro.

Ouvindo isto, o homem perguntou se ele faria umas alpargatas a partir de um modelo que ele levaria, mas seu Raimundo respondeu que ele não era bom de calçado e acrescentou que poderia fazer um teste, pode ser que ele fizesse.

O homem então foi embora e pediu um tempo para voltar, mas como ele estava todo armado, com chapelão quebrado do lado, cheio de estrelas na cabeça, seu Raimundo ficou com medo e disse que não ia esperar.

Só que o moço voltou e tirou de dentro do bornal o molde para as tais alpargatas. Para surpresa do pai do Espedito, o molde era quadrado, igual na frente e atrás! vejam só! Completamente diferente de qualquer solado de calçado que ele tivesse visto. Perguntou para o moço por que era assim. Ele respondeu: — Não, você faça do jeito que estou lhe mostrando o modelo e o molde e deixe isso para lá —

Mesmo desconfiado, seu Raimundo fez as alpargatas e depois de 29 dias o homem voltou para buscar. Quis saber o valor para poder pagar, avisando que não era para falar para ninguém porque eram para o coronel Virgulino e mais ninguém poderia saber. Seu Raimundo tremeu nas bases só de pensar e acabou não cobrando e deixou para lá…. — Afinal eram cangaceiros perigosos né? – disse ele.

Pistas desse peste

A verdade é que eles mandavam fazer as sandálias assim para dificultar a pegada e despistar a polícia. Quando acontecia uma desordem, a polícia era acionada e eles chamavam o rastejador que existia no Sertão. O rastejador conseguia pegar o rastro de quem quer que fosse, mesmo atravessando o rio cheio, ele chegava lá para pegar. Com Lampião era diferente.

“Não vamos atrás desse peste, não sei se está indo ou ta voltando” — dizia o rastejador.

Depois de uns trinta e tantos dias do seu Raimundo ter entregue a encomenda, o próprio Lampião mandou um punhal de presente, como agradecimento por ele não ter cobrado nada pelas “alpragatas” — como ele as chamava. Esse punhal está com a família Seleiro até hoje, passou pelo seu pai, sua mãe e agora está com Espedito.

Espedito para o mundo

É possível imaginar esta região do agreste, do famoso Cariri, sem algum turista que queira comprar as coisas lindas que os Seleiro produzem meu compadre?

Não sinhô!!!

Claro que não, têm turistas que vem de lugares perto, de aqui e de acolá, dentro deste país e de tantos outros lugares de lá, eles vêm de longe, muito longe e mais longe que aqui. Vem gente que fala outras línguas, de cabelos loiros, vermelhos, curto ou longos, cada um mais diferente. Se antes os Seleiros fabricavam artigos para agradar os vaqueiros, agora pensam nas mulheres também e assim nasceu a linha Maria Bonita. Reinventou o couro colocando cor nele, produzindo coisas lindas para moças como bolsas, sapatos, acessórios que viraram moda e representam o Sertão fora daqui.

Desenho no couro

Tem o Sebrae, a CEArt, tem GeoPark e outros órgãos do governo também — levam muita gente para lá. Os turistas vão para Fortaleza, depois para Juazeiro e incluem o Crato também, pois o passeio é desse jeito mesmo, então claro que eles acabam chegando até Nova Olinda, onde a turma do Espedito está. Os turistas querem ver tudo isso de perto, querem ouvir as histórias, passear ali pertinho na Casa Grande e ainda comprar as coisas que todos fazem por lá.

 

Envelhecer

“Você sabe quando um idoso fica bem alegre?” ele pergunta.

“Quando vê um mais velho que ele!” responde às gargalhadas.

Este é o espirito alegre do Espedito Seleiro e assim ele ficou muito conhecido, porque tem gente que acredita e gosta do que é da terra, feito por gente da terra. Dessa maneira são escritos contos e livros para esse legado nunca se perder, porque é preciso dar valor enquanto ele está aqui para a gente conhecer, sentar com ele e conversar — as sementes plantadas continuarão germinando por muitos e muitos anos.

Sonhos

E se este Seleiro tivesse um sonho, qual ele seria?

Nem adianta perguntar porque ele não diz de jeito nenhum. Todos são segredo – diz ele com olhar maroto de quem os guarda bem debaixo do colchão e apenas os revela quando já foram realizados.

Mas se ele não me conta, eu arrisco dizer, meu sonho é poder contar muitos contos como essa daqui, para poder mostrar para os jovens como nossos velhos viveram, como era diferente a vida e muito dura também. Sonho que essas lendas e histórias de vaqueiros, cangaceiros, mestres e artesãos, histórias de pais, de filhos e de gente comum, que todas possam atravessar estradas e mares carregando um pouco deste sertão, para quem acredita num mundo melhor.

O Espaço do Espedito no Centro Cultural de Nova Olinda

Notas:

Espedito Seleiro é reconhecido como um dos Tesouros Vivos da Cultura do Ceará, fez exposição em Milão, Itália, junto com os irmãos Campana, artistas da cidade de São Paulo. 

Em 2016 foi homenageado pelo Senac do Ceará, com o lançamento do seu livro Meu Coração Coroado: Mestre Espedito Seleiro. 

Em 2018 recebeu do Sesc a Comenda João Luís Ramalho

Em 2019, com o apoio do Sistema Fecomércio Ceará, foi montada uma exposição na Embaixada do Brasil em Londres, mostrando sua obra e parte de sua história.

Sandra e Espedito – Ceará 2019