Axé!

Axé, na língua iorubá, idioma nigero-congolês significa poder, energia ou força presentes em cada ser. É a energia sagrada dos orixás nas religiões afro-brasileiras.

Saúdo com admiração a mãe de santo Beatriz Moreira Costa, a Mãe Beata de Iemanjá, ialorixá do candomblé, cuja história começa em janeiro de 1931, na cidade de Cachoeira do Paraguaçu, no Recôncavo Baiano.

Mãe Beata recebeu da sua mãe Maria do Carmo e do seu pai, Oscar Moreira, inúmeras histórias de seus antepassados na África e no Brasil, detalhando acontecimentos, mitos e contos que através dela e da grande família, de sangue ou espiritual que ela formou, continuarão vivos na memória das próximas gerações.

“Saber de onde se vem é fundamental para manter os pés firmes no chão e os sonhos soltos no ar. Meus antepassados são do norte da Nigéria. Gente da qual me orgulho muito.”

Na sua descendência de mulher negra afro-brasileira encontrou o valor e a coragem, símbolos de resistência. Com inteligência e firmeza abraçou causas, defendeu mulheres e injustiçados, lutou pelos excluídos.

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Sempre teve orgulho de sua cor e de ter nascido mulher, exatamente como ela é.

Mulheres negras são lindas. Mulheres africanas rainhas. Mulheres princesas.

Como Aqualtune, princesa africana, filha do rei do Congo.

“…. foi uma grande guerreira e estrategista e liderou um exército de 10 mil homens para combater a invasão de seu reino, em 1695. Quando perdeu a guerra, foi escravizada e trazida ao Brasil, onde foi vendida como escrava reprodutora. Grávida, Aqualtune organizou uma fuga para Palmares, onde deu à luz Ganga Zumba e Gana, que mais tarde seriam chefes dos mais importantes mocambos de Palmares, e também Sabina, mãe do grande líder de Palmares, Zumbi.” (Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis, Jarid Arraes)

 

foto Roberto Moreyra - Agência O Globo, 2017

Pequenina, personalidade forte e determinada, Mãe Beata de Iemanjá falou alto e se fez escutar. Sua voz ecoou além das fronteiras deste país, onde foi guerreira na preservação do meio ambiente, dos direitos humanos e da educação, sem ter ao menos conseguido estudar. Mulheres sábias não se calam diante da falta de diplomas, elas se fazem entender.

Foi assim que ela se manifestou, quando ofereceu à doméstica Angélica Teodoro, o prêmio Bertha Lutz-2007  que recebeu, em apoio pela sua injusta prisão.

“Minha casa está aberta para pobre, rico, operário, artista, homem, mulher, preto, branco, gay, lésbica, velho, criança… porque gente precisa de gente”

Usou as palavras com habilidade contra o preconceito racial e a intolerância religiosa, assim como contra o sexismo e a violência contra a mulher. Escreveu livros, participou de debates, recebeu honras e condecorações.

Em suas entrevistas falou que é preciso ter fé. Para Mãe Beata fé é o conteúdo e a dignidade de cada um.

“Sou de uma religião em que o tempo é ancestralidade. A fruta só dá no seu tempo, a folha só cai na hora certa”.

Jornal do comércio do Brás, 2005

“Me ferraram com ferro em brasa, fizeram eu comer a poeira, mas eu nunca esqueci quem eu sou. Sou negra, sou mulher, sou fruto da minha raça, não sou fruto de um doutor.”

“Não fui usada, eu não fui comida, não me entreguei a qualquer um. Mostrei a minha raça, sou negra, sou mulher, não sou desgraça. Choro pelo meu povo, pela minha raiz, pela minha cor, pela minha religião.”

“Eu não posso negar a toda hora que eu digo, sou negra, sou mulher, sou a raiz do fruto, tenho a bunda grande, os lábios, o nariz, cabelo duro, pé grande, porém sou mulher. Sou gostosa, não me chamem de sapoti, não me chame de mulata, não sou produto do Brasil, sou negra descente de africano, eu nasci por lá.” 

“Também nasci aqui — sabe por que? Eu sou filha de todos Brasil, nasci no Recôncavo Baiano e hoje estou aqui saudando meus amigos … Ruth de Souza, Carolina de Jesus*, Luísa Mahin*… Ai meu Deus!!! que saudade eu tenho. Brevemente estarei com eles — eu vou para lá — ninguém me tira que eu não vou — eu vou.

Já plantei as sementes quem quiser pode comer. Mas eu morro dizendo sou mulher, tenho timbre, não é qualquer um que pode me comer.” (Com a palavra, Mãe Beata de Iemanjá — Reino de Oxaguiã)

Em maio de 2017 Mãe Beata de Iemanjá não resistiu à saudade dos seus amigos e partiu. Para ela não há morte e sim a continuidade de outra vida, mais plena, com mais sabor, com mais vigor, com mais serenidade.

Em homenagem a estas amizades de Mãe Beata de Iemanjá e pelo que estas mulheres representaram na história deste país, cito abaixo trechos do livro Heroínas Negras Brasileiras em 15 Cordéis de Jarid Arraes, reforçando histórias e trajetórias:

* Carolina de Jesus  (1914 -1977) “importante escritora brasileira. Em 1937 sua mãe faleceu, e Carolina decidiu se mudar para São Paulo, onde construiu sua própria casa utilizando madeira, papelão e outros materiais. Para sustentar a família, ela saia à noite para coletar papel, guardando revistas e cadernos antigos que encontrava. Em suas folhas escrevia sobre sua vida na favela ….. um desses cadernos deu origem ao seu livro mais famoso Quarto de Despejo, publicado em 1960 e traduzido para treze idiomas em mais de quarenta países….”

* Luísa Mahin  (sec 19)africana vinda da Costa da Mina, onde teria sido uma princesa, vendida depois como escrava. Foi trazida ao Brasil e alforriada em 1812. Viveu como quituteira em Salvador e deu à luz Luís Gama, importante abolicionista e poeta brasileiro. Luísa era praticante da religião islâmica e repassava bilhetes em seus quitutes, envolvendo-se em muitas rebeliões como a Revolta dos Malês….”

Histórias precisam ser contadas. Foi feito pelas gerações anteriores e assim continuará, para que elas nunca sejam esquecidas.

O legado de Mãe Beata de Iemanjá é colossal. Seu exemplo digno de perpetuar. Mulher negra, linda, afro-brasileira para honra e orgulho de uma nação.

Axé!

Livros publicados: 

  • Caroço de Dendê — a sabedoria dos terreiros: Como yalorixás e abalorixás passam conhecimentos a seus filhos (1997)
  • “Tradição e Religiosidade”, in WERNECK, Jurema (org.). O livro da saúde das mulheres negras. (2000)
  • “As histórias que minha avó contava” (2005)

Referências e créditos:

1. Heroínas Negras Brasileiras em 15 Cordéis, Jarid Arraes — São Paulo: Pólen, 2007

2. Blog Fernanda Pompeu digital

3. Blog Terreiro da Tradição

4. Jornal CorreioNagô

5. Site Isto É

6. Imagem da capa: Convite “Projeto Conversando Histórias” Nova Iguaçu – em homenagem ao dia Internacional da Mulher Negra Latina.

 

Encontro com Aderbal, filho de Mãe Beata do Iemanjá e Vanda Paiva Reis em Jul-2018