
“Um dia eu não sei o que que aconteceu, vovô saiu de casa e desapareceu
só voltou na 4ª feira de madrugada, cantando alegre uma batucada
e quando vovô chegou, vovó muito aflita desmaiou
vovô então chamou vovó de rabugenta
Gritou, gritou, gritou e disse assim
agora é para mim, agora é para mim, a vida começa aos sessenta”
Não sei se foi a marchinha de carnaval que a Heny e suas filhas cantaram para mim ou as risadas gostosas que volta e meia ela soltava, talvez seu senso de humor afiadíssimo e com certeza, os deliciosos pães de queijo com gergelim que a Maria Luiza trouxe, tudo isso contribuiu para que essa reunião familiar se transformasse numa tarde divertida de memórias surpreendentes.
Heny Pacheco de Magalhães não é uma pessoa comum, consequentemente sua entrevista não poderia ser diferente. Quando quis saber sua idade e ano de nascimento, ela, do alto dos seus 98 anos, me respondeu: “Pronto! Começou o esculacho, sei lá que ano que eu nasci!”
Nesse instante eu soube que a mulher que estava na minha frente, de vestido azul escuro estampado, longos cabelos negros perfeitamente trançados, emoldurando o rosto delineado pelas sobrancelhas grosas e lábios vermelhos não era uma Frida Kahlo como imaginei e sim uma descendente de índia brasileira com alma genuinamente carioca.
Seus relatos foram me levando a vários momentos de sua vida, desde seu nascimento na chácara Todos os Santos, à infância na roça, ao colégio interno na cidade vizinha e à família de oito filhas mulheres – Edyr, Lygia, Olga, Luiza, Zélia, Eunice, Iris e Heny e somente um filho homem – Vespaziano, que chamavam de Zizito. Me falou de seus pais, Antonio José de Magalhães e Maria, ou Mariquinha. Sorriu ao mencionar que sua mãe os educou só com o olhar, sem precisar bater ou gritar e se diverte ao recordar a história do seu nascimento, sua mãe gritando muito ao dar à luz, enquanto era assistida por uma parteira. Exatamente do mesmo jeito que ela gritou, quando sua filha Maria Luiza nasceu, em pleno bairro de Laranjeiras.
- Irmãos: Eunice, Olga, Zélia, Iris, Luiza e Vespaziano
- Antônio José, Mariquinha com filhas, genros e neto
- Familia e amigos reunidos
“Mamãe sempre foi uma mulher à frente do seu tempo” comenta Maria Lygia, sua outra filha, e nos conta como Heny sempre teve atitudes corajosas ao longo da vida, como quando queria ser bailarina e se fez passar por uma colega, só para convencer seu pai. Também quando soube que na Europa estavam usando maiô de duas peças e ela não pensou duas vezes, pegou a tesoura, cortou o maiô e foi para praia. Foi um arraso!
Se desquitou numa época em que mulher desquitada era muito malvista, não recuou nem mesmo quando enfrentou dificuldades para colocar as filhas no colégio – isto era um escândalo na época. Não importava, ela nunca desistia e encarava as situações com firmeza.
- Heny, a la Marilyn Monroe
- Luiza, sua irmã, cheia de personalidade
- Heny, bela e ousada
“A bichinha é danada” ri Maria Lygia; Heny me olha e sorri orgulhosa, “nunca tive medo da vida. A vida tem que enfrentar. Se recolher não dá”, ela fala com convicção sabendo que este é o grande legado que está deixando para suas filhas, netos e bisnetos. “É verdade, todos vêm para cá aprender com ela – a gente tem que enfrentar” disse sua filha.
Fiquei curiosa com essas histórias e ela atenta como sempre, brinca comigo me chamando de bisbilhoteira, todos caímos na gargalhada!! Imagina se eu vou perder esses relatos…
E o sonho de ser bailarina?
Ela me conta que não conseguiu realizar este sonho porque seu pai ficou para morrer de desgosto. Mesmo com contrato fechado para dançar no corpo de baile do Municipal, teve que pedir para cancelá-lo, foi demais para ele. Ela chegou a se fazer passar por outra bailarina e o convidou para ver o espetáculo, quem sabe mudaria de ideia ao ver que era algo muito bonito.
Heny falou para ele prestar bem atenção numa determinada moça porque ela dançava muito bem. Ele foi ao teatro, sentou nas cadeiras da frente e assistiu todo o espetáculo, quando acabou comentou com ela: “Engraçado filhinha, aquela moça que você falou que dança muito bem, ela parece tanto com você…” e ela: “Pois é pai, ela parece tanto que sou eu mesma, para você ver que não tem nada de mais.”
Não teve jeito, seu pai ficou tão amargurado que ela não teve outra saída a não ser encerrar a história de bailarina ali mesmo. Mas bem que tentou.
Depois veio a faculdade de Belas Artes. Mal sabia ela que seu porte e elegância ficariam registradas numa estatua amplamente conhecida no país. Na época, seu professor, Alfredo Ceschiatti, também escultor, foi escolhido para fazer a estátua conhecida como “A Justiça” que seria colocada, com destaque, em Brasília. Como ele não tinha dinheiro para pagar uma modelo, quem posou para ele? A Heny!!
“Meu pai, um imigrante italiano chegado no começo do século ao Brasil, era padeiro.
Vivia com as mãos na massa. E eu, afinal, repito a mesma coisa.
Só que troquei o trigo pela argila e, em vez de pães, faço estátuas.”
Alfredo Ceschiatti, escultor
Quem poderia imaginar que um dia estaríamos conhecendo a modelo que serviu de inspiração para essa estatua tão emblemática. Esta é a Heny. Sempre surpreendendo.
Entre uma brincadeira e outra, me fala do seu marido, Mirabeau e me emociono ao saber que ele trabalhou exatamente no mesmo local e na mesma época que o meu pai. Coincidentemente faleceram no mesmo ano, 1979. Por um momento tive a nítida sensação de estar em um lugar muito familiar para mim.
Mirabeau foi um delegado com alma de diplomata. Se aposentou da delegacia da Praça Mauá, apesar de ser uma época bastante desafiadora, ele era o tipo de delegado que levavam bolo ou lanche para seus presos. Quando havia aniversário na casa, era Heny que os fazia, eles eram enormes e maravilhosos, mas antes de cortar o primeiro pedaço ele falava: “Henizinha, minha filha, antes de abrir o bolo, este pedaço aqui você separa que eu vou levar para meus presos”. E assim fazia. Quando elas iam visita-lo na delegacia era festa! Levavam sanduiche do Bob’s, coca-cola e guaraná para eles. Pode imaginar?
Anos depois quando a Maria Lygia trabalhava na Estácio, um professor chamado Gerson, comentou que seu pai tinha sido amigo do pai dela e contou a história do bicheiro: “Você me desculpa mas você está na minha esquina, vou ter que te prender senão vão dizer que eu sou um frouxo” e assim, pedindo desculpas, Mirabeau prendeu o bicheiro na sua delegacia.
Heny gosta de ouvir o que as filhas estão contando, voltar no tempo é como abrir portinhas que estavam ali fechadas, de repente o ar se movimenta no espaço e surgem mais e mais lembranças que alegram e divertem todos.
Me conta que gosta de sair, iria todos os dias tomar um chopinho se a deixassem. Gosta de passar o tempo colorindo um caderno que tem belos desenhos. Sinto que é uma espécie de local sagrado das mulheres da casa, são várias gerações que se debruçam nesse caderno criativo onde escolhem com cuidado as cores e as combinam com harmonia enquanto conversam e se acolhem.
Marchinhas de carnaval, a impressão é que sabe todas, canta com suas filhas com atenção para não perder uma só palavra, e entre um gole e outro de café surge o melhor conto do dia.
Maria Luiza conta de como sua cunhada conheceu a Heny, sua mãe.
Apaixonadas por carnaval, um dia a Heny e sua irmã Nadja estavam numa loja de roupas de ballet chamada Ballerine. Estavam provando roupas e se divertiam enquanto escolhiam o que vestiriam no baile. Nesse momento entra na loja a sua futura cunhada e vê as duas vestidas somente de body e com pompom de coelhinhas. A cena causou grande impacto nela, imagina, dois mulherões com aquele corpão todo, tipo violão e usando body com pom pom!! Ela pensou, meu Deus, duas deusas maravilhosas, se arrumando para ir para o baile de carnaval.
Ela que era uma moça toda seria, pudica, ficou muito impressionada e a imagem não saiu da cabeça. Depois ela foi conhecer a família do marido, o sogro dela – Mirabeau, e de repente ela vê que a mulher dele, Heny, ou seja, madrasta do marido, era uma das coelhinhas!!! Todos caímos na gargalhada!!
Heny olha para mim séria e diz: “Essas duas ao invés de enaltecer a mãe, a desmoralizam!!! Era o que faltava para fechar nossa tarde. Foi sensacional a sua fala!
Em silêncio, serena, de repente percebo ela olhando para o infinito.
Me diz que é uma mulher abençoada, teve uma vida muito feliz e que Papai do Céu a agraciou com uma família maravilhosa, seu pai e sua mãe foram duas joias na sua vida, suas filhas são duas porcarias fora de série, a Rita que cozinha para ela é um anjo e todos esses netos e bisnetos que sempre a fazem se sentir muito feliz.
- Luiza, Lygia, Heny, Maria Luiza e Edyr
- Maria Lygia, Michelle e Heny
Não importa em que etapa da vida os registros tenham sido feitos, o amor sempre está presente e de tão presente ele se tornou real. Almofada que brilha com mil cores, que desenha rostos, sorrisos, abraços e até um pequeno cão. Esta é a sua família e ela dorme abraçada com eles, todas os dias.
A companhia da Heny, da sua querida irmã Luiza de 106 anos e suas filhas, Maria Luiza e Maria Lygia, me trazem a certeza que a felicidade, em qualquer idade, está diretamente entrelaçada com a intensidade e a disponibilidade que dedicamos para a alegria e para o amor às pessoas. Os olhos já dizem tudo.