Abro a grade da portaria do prédio, saio devagar na rua e enquanto caminho pela calçada, não deixo de sorrir ao lembrar essa incrível senhora, de noventa e dois anos, cheia de atitude e graça, que acabo de conhecer.

Essa mulher é a Adyr do Carmo Fonseca, o próprio nome já indica o quanto ela é incomum. A começar pela sua descendência portuguesa, africana e turca, imprimindo nela traços belos e marcantes, além de seus gostos, como ela afirma: “coisas de menino”.

Estes gostos, e por que não dizer paixões, nasceram de mãos dadas com seu pai: rodar pião, soltar pipa e balão, jogar futebol e bola de gude, além de dançar carnaval. Tudo isso foi seu pai que ensinou.

Suas histórias me fizeram voltar no tempo e lembrar a alegria que as crianças sentem quando passam as férias na casa de tios ou avós perto da praia. Imagine se essa cidade for o Rio de Janeiro e a praia, Copacabana.

Consigo ouvir as crianças, todas falando alto e ao mesmo tempo, tamanha excitação. Posso vê-las acordando e tomando café da manhã com aquele pão francês quentinho e crocante enquanto fazem planos do que farão ao chegarem na areia. Morando perto da praia, na rua Toneleiros, quase esquina com a Siqueira Campos, o lugar era perfeito para se aventurarem no mar duas vezes por dia, de manhã com a tia Adyr e de tarde e até o anoitecer, com seu marido, que ao chegar do trabalho, carregava todos eles novamente para um ultimo mergulho refrescante antes de dormir.

Adyr adorava cozinhar, embora seu marido não gostasse que ela fosse para a cozinha. Eu posso imaginar o aroma e o sabor que seus brigadeiros tinham, considerando que até recebia encomendas, por telefone, diretamente dos Estados Unidos. Ela me conta que havia uma mansão na Avenida Atlântica, frequentada por repórteres americanos. Ali se reuniam para discutir reportagens e definir pautas de trabalho, mas a dona da casa, antes de chegar no Brasil, já ligava encomendando as delicias. “São coisas que a gente nunca esquece” diz a Adyr. Claro que não!

Enxoval de bebê

Adyr casou aos 18 anos e nunca precisou trabalhar, mas sempre gostou de ajudar os outros. Desde muito jovem fazia panelões de comida para distribuir quentinhas na rua. Aprendeu a fazer tricô, observando as pessoas fazendo e faz enxovais de bebe até hoje, para distribuir às mães que precisam. Quando recebe um dinheirinho extra fazendo bolos ou doces, compra os brinquedos que junta durante o ano todo e distribui na festa de Cosme Damião. Ela completa: “me sinto fortalecida ajudando os outros”.

Mini fogão

Bougainville rosa

Sua casa é simples e pequena, parece uma casa de bonecas, tem flores no meio da sala, cozinha com azulejo de cor verde e um fogão que mais parece de brinquedo.

 

 

 

 

Bandeja de azulejo

Sua bandeja, que ganhou de presente de uma amiga, é branca e decorada com pastilhas. As xicaras de café, lindamente enfeitadas com corações.

Xícaras com corações

 

 

 

 

 

Tomamos café na sua cozinha e enquanto admiro cada detalhe do lugar, pergunto como é envelhecer.

Ela responde: “Normal. Todos temos altos e baixos”.

Normal, imagino eu, para ela que é uma mulher de espirito vitorioso, que não se deixa intimidar.

Normal, para alguém com determinação e coragem suficientes para acolher, por exemplo, uma moça grávida dentro da sua própria casa, depois de ter sido rejeitada pela própria família. O fato é que este gesto de solidariedade mudaria sua vida. Após o nascimento do bebê, esta moça decide entrega-lo para a família da Adyr por não ter condições de criar. Eles adotam o bebê, um menino, e seria sua companhia até hoje, já que seu filho natural, faleceu de maneira trágica ainda muito jovem.

Admiro Adyr, celebro sua coragem e força e assim me despeço depois de um longo papo, interrompido, uma vez ou outra, por deliciosas gargalhadas. Típico de uma verdadeira ariana.

Ao sair ela fala para mim: “O importante é chegar na velhice feliz”.

Lembrarei disso sempre.

Com Adyr, jul-2018